terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Pesadelo

Ontem à noite, depois de uma forte chuva, o vidro do para-brisas do meu carro me fez ter uma recordação terrível. De tão límpido que ficou o vidro, vi nitidamente aquela coisa amorfa e densa que eu sonhava quando criança e que me fazia acordar assustado e com fortes crises de choro. Era deprimente, angustiante, sofredor, desesperador. Eu nunca falei desse pesadelo pra ninguém, pois não sabia descrever aquela coisa. Como falar daquilo que não se sabe? Até hoje só sei que era sem forma conhecida e densa. Era terrível! Apesar de lembrar, visualizar, enxergar, eu não consigo descrever o que é aquilo. Outra coisa que me faz recordar essa coisa é cabelo liso, muito liso, muito liso mesmo, e comprido. Hoje não sinto mais medo ou angústia, mas me recordo como se fosse a primeira vez. Era terrível! Queria muito não ter mais lembranças daquilo. Suscita alguns sentimentos desnecessários.

sábado, 11 de agosto de 2018

Árvore-Ser


Ando sobre a Terra E vivo sob o Sol, e as...
e as minhas raízes eu balanço, eu balanço
Eu balanço Todo santo dia, pois todo dia é santo
E eu,
sou uma árvore bonita
Que precisa ter os seus cuidados
Árvore - Edson Gomes

Eu amo cachorros. Mas algo me diz que se eu não fosse humano, com certeza, árvore eu seria. Por que? Pergunto-me, perguntam-me! Não sei. Apenas aquela sensação de certeza de que assim seria. Talvez a minha condição psicológica de que devo permanecer. Permanecer no que? Na permanência de permanecer sempre. E árvore sempre permanece. Nós animais costumamos transitar. Mas há, em mim, uma vontade de permanecer. E o engraçado que não amo árvores, mas animais, precisamente o cachorro. Tudo que precisamos é amor e cachorro, grita um quadro aqui na parede. Mas, na minha última viagem pela Costa do Cacau, na Bahia, há poucos dias, vi tantas árvores lindas que, de novo, emergiu em mim o pensamento de que árvore eu seria se. E acho que ao pensar nelas, falar delas, gostaria de me expressar como se elas eu fosse. As árvores, como todos os demais seres, são sozinhas em si. Uma árvore é sempre uma árvore por mais que a ela se agregue tantos outros seres, ela é um indivíduo no sentido pleno da palavra. Nós, humanos, somos como as árvores mas ao contrário: nossas raízes estão no alto, distante do chão. Certamente que se nossas raízes fossem no chão não seríamos humanos mas árvores. Elas são imponentes, porém vulneráveis. Estáticas, não podem fugir das ameaças. Abrigam muitos outros seres. Paradoxalmente, amam tanto o sol e o buscam o quanto podem que, com isso, geram sombra para aqueles que fogem do sol. Frutíferas, floridas, esguias, frondosas, desfolhadas, altas, fortes... todas elas perto de muita água ficam plenas. Aliás, perto de muita tudo é feliz, já dizia o poeta. Os pássaros amam as árvores, amam tanto que delas fazem suas moradas, dormem nelas, delas se alimentam, fazem amor nelas, seus ninhos, fazem das árvores seu mirante, de lá enxergam tudo: o que seria dos pássaros se não fossem as árvores. Há uma interdependência entre eles. Para agradecer às árvores, os pássaros e outros animais espalham suas sementes. Os não pássaros agradecem pela sombra e também pelos frutos. E cada um é um ajudando o outro porque sabem que sem o outro não podem ser. E ser é o que importa. É sendo ser que se é. E os ventos e as árvores? Parece um carnaval. Eu nunca fui no carnaval, mas eu acho que é isso. Quando a gente olha para uma árvore a sensação é de que ela é mais. Ainda mais quando é uma árvore de Terreiro. Solitárias chamam a atenção por sua solidão em um descampado. Quando juntas, tornam-se floresta e ficam misteriosas. Tornam-se um mar de verdes. São muitos os tons e sons, as árvores, como florestas, reúnem cores e barulhos. Mistério e medo são daqueles que não habitam a floresta. À noite, quando chega a escuridão, elas se impõem e são mais escuridão que a noite, e os tons da escuridão revelam a floresta como contorno da paisagem. E outros sons emergem na noite da floresta. E a árvore parece que não descansa, pois todos os seres e ventos da noite também interagem, necessitam das árvores. E quando amanhece, as árvores estão lá, como sempre, elas são o tempo todo o que devem ser. Afinal, não há tempo para descansar de ser. Sempre sendo o que se é até que se deixe de ser. E como tudo o que existe, elas também deixam de ser, como nós, como tudo, e isto é um grande infelizmente.

sábado, 6 de agosto de 2011

Benedicta és tu!

Um dos sentimentos mais nobres é aquele que gente falsa não sente. Aquele sentimento que francês, apesar de sentir, não sabe dizer. É um sentimento capaz de ser ruim e bom, dependendo das circunstâncias. Em mim, é sempre bom! Esse sentimento está para além de qualquer palavra; é grande e invasivo, profundo e gigante, capaz de produzir outros fora de nosso domínio. Um sentimento que só se tem por quem se ama. Filho do amor! Quer dizer: filha do amor! Um sentimento do sexo feminino, parindo todos os demais sentimentos. Um sentimento que dói no coração de quem ama. Quem sabe este sentimento não seria a esposa do amor (?) De qualquer tipo de amor. És Saudade o seu nome! Como é bom sentir saudade! Como é ruim sentir saudade! Como dói sentir saudade! Como me alegra sentir saudade! Como amo e quero aqueles e aquelas por quem morro de saudade! Benedicta Saudade!
Josemar Rodrigues da Silva
05 de maio de 2011
23h04min

Saudade - Chico César / Moska
http://www.youtube.com/watch?v=nAubQyzIsSY
 
Saudade a lua brilha na lagoa
Saudade a luz que sobra da pessoa
Saudade igual farol engana o mar
Imita o sol
Saudade sal e dor que o vento traz
Saudade o som do tempo que ressoa
Saudade o céu cinzento a garôa
Saudade desigual
Nunca termina no final
Saudade eterno filme em cartaz
A casa da saudade é o vazio
O acaso da saudade fogo frio
Quem foge da saudade
Preso por um fio
Se afoga em outras águas
Mas do mesmo rio.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Teu cheiro...

...é uma metáfora para meus prazeres. No teu cheiro meus instintos encontram o caminho por onde desejam fazer-se. Pelo teu cheiro sinto meus olhos brilharem no reflexo dos teus. Em teu cheiro minha alma encontra o refrigério de que precisa. Do teu cheiro brota uma essência que atrai para ti toda minha respiração. Há em mim um desejo aromático por ti. Teu cheiro enche meu mundo de fôlego. Por causa de teu cheiro eu quero apenas inspirar as lembranças inesquecíveis. Teu cheiro cria em mim uma memória de presentes. Teu cheiro é o perfume que agrada meu querer, desperta meu corpo, esquenta meu sangue, ressuscita meus sentidos, revigora meu tato. Minha razão, sufocada pelo teu cheiro, perde-se nas mãos que percorrem todo teu corpo perfumado. Teu cheiro me excita. Teu cheiro me quer dentro de ti. Quero você dentro de mim – te respiro todo, te cheiro, te respiro, te cheiro... Teu cheiro me dá sensação de felicidade, teu cheiro efêmero cria algo infinito em mim: o lugar da saudade e do desejo. Teu cheiro cria em mim a força da saudade, a fraqueza da razão, a loucura da paixão, o destino dos sentidos... Teu cheiro cria em mim um sentimento de reticências. Teu cheiro cria em mim pensamentos sem palavras e palavras sem sentido. Teu cheiro é a rima da poesia declamada pelo oráculo do desejo. Teu corpo parece mergulhado num perfume que possui todas as fragrâncias, teu cheiro conduz meu rosto por todo teu corpo, buscando a fonte do teu sabor, querendo o lugar para ali descansar meu desejo. Teu cheiro desperta meus segredos, me coloca no caminho por onde me perco, me encontro, por onde sou. Teu cheiro me faz sentir coisas infinitas, efêmeras, potentes, me faz sentir dependente da vida, do corpo... Quando sinto teu cheiro, te sinto dentro de mim, se fazendo em mim, me consumindo por dentro, preenchendo meus espaços, me ajudando a ser, me faz. Teu cheiro, acompanhado de tuas mãos, tira de mim todos os sentidos, desfaz todas as esperanças, constrói um presente eterno. Teu cheiro, acompanhado de tua boca, torna minha alma sedenta de tua saliva. Teu cheiro, acompanhado de tua força, me obriga à espontaneidade da completa entrega. Teu cheiro me conduz tão somente para você, e todos os caminhos só me mostram você sorrindo. Teu cheiro me conduz à liberdade, e todos os meus instintos se realizam nele. Teu cheiro faz teus braços sustentarem o fogo que me consome e tuas pernas dominarem meu destino. Teu cheiro não é apenas aquilo que percebo em ti, mas teu cheiro é aquilo que me conduz, o algo dos meus espaços, o infinito do nosso presente, a solidez de nosso encontro efêmero, a coisa que nos dá a noção de eternidade.

Josemar Rodrigues da Silva
04.07.2010
01’19’’/10’25’’

sábado, 22 de maio de 2010

Assim ...


... essa solidão profunda, essa falta de domínio sobre a existência, essa demanda infinita de ser, essa infelicidade que perdura e maltrata, esse desalento profundo, esse amor insubstituível, essa finitude horrenda, eu, esse desequilíbrio com e sem precedente, esse choro da alma, eu sem mim, esse amanhã que não chega e perturba esse descontrole emocional, esse desejo de nunca ter sido, meus amigos, minha família, eu de novo, essa esperança desesperada, uma saudade do tempo em que eu não era e que era tempo de se repensar sobre a necessidade de meu existir, uma esperança por serenidade, um desejo de serenidade sobre eu mesmo, uma tolerância in-su-por-tá-vel, uma paciência inútil, um acaso deixando de ser, uma esperança de fatalidade, um excesso de esperança, uma infelicidade insistente, eu, uma vida indecisa, uma certeza de nada, a existência do futuro, a dor, sobretudo a dor, a sombra de melancolia, uma consciência perdida, hoje – uma repetição, uma nostalgia da agonia, a coincidência de inconveniências, a momentaneidade infiel da felicidade – antes nunca se tivesse tido idéia de felicidade – um homem e um destino incerto, uma perdição incompleta, desejos frustrados antes de serem qualquer possibilidade, um dia de aniversário, um dia de morte, a falta do ventre, um destino sem ventre, um vazio futuro, o outro em mim, a existência se desfazendo, o nó da dor, o desatar desse nó, o segredo dos sentimentos, a presença do desconhecido, o desconhecido em mim, conhecido, este dia doído, a solidão edificante, a pujança do nada, as lágrimas que descarregam o sentido, um desespero só meu, a ironia da felicidade, a sinceridade da tristeza, a maluquice da razão, a imoralidade dos valores, a justiça do que tem de ser hoje, a estrela que não brilha mais, a autoridade do sentido, o amanhã de ontem, o ontem do futuro, o silêncio do medo, as tentativas de alegria, o sucesso de cada dia, a noite e o temor, a indiferença do tempo, a exigência da percepção, não quero o destino, não quero as previsões, o acaso e a cura, eu, a vida e o caminho a ser feito.
22 de maio de 2010
11h46min.

domingo, 18 de abril de 2010

MARÇO

É muito difícil falar de março. Procrastinei ao máximo essa escrita, porém março se impôs como um tirano em sua docilidade. Já repararam como março é cheio de vida? Não sei bem se é março ou o outono, eu só sei que essa combinação é frondosa e enche nossos olhos de sentidos. Em tudo que olhamos queremos encontrar março, aliás, em tudo que olhamos março se impõe. As crianças e jovens retornam aos colégios, eis março ali. O sol... que belo o brilho do sol, presentes nuvens, uma chuva que lava a alma, e o cheiro das plantas como que nos convida a uma alegria que nasce sem causa humana. Acho que março congrega. Acho que março nos deixa bem sozinhos. As manhãs são tão delicadas, e à tarde só é possível ver o sol nas coisas. É um tempo intempestivo. É um tempo que da pra sentir a existência, assim como os trovões que parecem requerer da alma um peso que só elas têm. Tudo é tão visível em março, até o outono aparece. São dez horas da manhã e os trovões já gritam à distância que março é. O trovão é um “eu sou” de março. Como as pessoas são visíveis, não consigo deixar de ver cada uma delas. O trovão é de uma impetuosidade, é como se ele me firmasse no chão. E os pássaros parecem não sentir medo dele. E as borboletas? São poucas, mas voam numa inocência invejável. Não sei, mas parece que a leveza delas pesa na imensidão do ar, pois o vento parece não levá-las como leva as folhas secas e sem vida. Mas março sofre por não poder tirar de seu circulo o peso amargo de algumas almas cegas e insensíveis. Não enxergar março é diminuir um mês de existência, é perda de essencialidade. E as mocinhas começam a provar que março está presente, pois começam a passar aqui como pequenas normalistas. Assim os rapazes, todos vindo do colégio. É março se “marcilizando”. Cada março parece último, isso se dá talvez pela unicidade de março. Tudo verde e de uma esperança gigantesca. Emergem da terra os gafanhotos, as tanajuras, as mariposas... todos vivem. As noites de março são sem insônia, por isso achamos que elas são tão curtas, assim que dormimos acordamos. Parece que março é sereno, até os sapos são em março. Os sons são tão audíveis, e até o silêncio se escuta. As árvores parecem grandes, enfim, tudo é demasiadamente em março. Não – lembro-me agora que há faltas insubstituíveis. Março não foge à regra da existência. Não quero falar mais, quero deixar março ser o que é. As palavras podem esvaziar a experiência. É preciso ser sereno com março, deixá-lo ser esse apenas “eu sou”...

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Incoerências

Vocês me conhecem o suficiente para acreditar naquilo que digo sentir e pensar, por isso não peço nem exijo de vocês nada, mas tão somente o tempo para terminarem de ler esse doloroso bilhetinho. E peço-lhes desculpas por tomar esse tempo de vocês. Depois de pensar e pensar acabei chorando, não estou com raiva, sentimento que verdadeiramente pode estar sendo solidário aos dois, porém choro pela invasão de uma profunda e imensa tristeza. E confesso que eu não estou triste pela briguinha de vocês, pela troca imediata de ofensas ou coisas do gênero, estou triste tão somente pelo fato de que a amizade, deusa crida tão poderosa, tenha se revelado surpreendente e dolorosamente frágil, como eu. E, pra mim, é insuportável vê-la igualzinha a mim, e pior: revelada assim em vocês, vocês que tanto alimentam minha esperança e minha força de superar esse espeinho terrível que me atormenta todos os dias, todas as horas, todos os sonos, que atormenta minhas alegrias, conquistas, enfim, vocês certamente, por mais que queiram, não entendem e há de nunca entender, pois para entender seria preciso perfazer esse caminho que é tão meu.
Se desentendimento houve, certamente ele foi necessário pra alguém, pra ambos, menos pra mim. Entendo, estou chorando, mas inteiramente convicto de que sou capaz de superar aquilo que nem me pertence, aliás, por isso mesmo serei capaz de superar, driblar essa angústia jamais pensada, inimaginavelmente desejada. Serei capaz sim, buscarei, forjarei todos os artifícios para superar, apelarei até ao Deus de vocês.
Vocês necessitam de um tempo para resignificarem a relação de vocês, é preciso, os fatos se impõem e impõem escolhas e atitudes. Mas a mim também, in-fe-liz-men-te. E como tudo se torna agora “imposto” – no duplo sentido, porque também isso é um ônus – eu preciso desse tempo, eu preciso me reencontrar antes de vocês, sem vocês, eu preciso me zerar, desabsolutizar vocês para não sofrer mais com perdas, eu descobrir que eu não sei perder coisas boas e fundamentais. Diriam: “Ah, Josemar, você não tá me perdendo!” – não gente, eu perdi vocês e agora eu tenho de retornar pro meu tempo e reconquistá-los separadamente, eis uma tarefa que se impõe e que será insuportável, depois de ter experimentado a mais deliciosa e sublime experiência de amizade, essa deusa poderosamente frágil. Eu não quero mais amar amigos como eu amei essa amizade tripla – pois ainda sofria calado a falta de um “guerreiro” nessa amizade, e como sofria pela falta dele nessa cotidiana e necessária amizade.
Ôôôô gente, como sofro por tudo isso! Mas não quero ser apelativo, pois eu sou defensor da liberdade e não quero que minha fraqueza e fragilidade seja mediocremente apelativa. Neguem e reneguem isso em mim. Desejo, necessito, quero que vocês sejam livres, que vossos sentimentos sejam tão fortes e robustos como deve ser minha querida liberdade e promessa de superação.
O sentido da cicatriz é a marca, e se vocês juntos marcaram minha vida, faz-se necessária, agora, a cicatriz. Que ela seja bem-vinda. Reafirmo que desejo, que necessito, que quero que tudo seja como vocês planejaram até antes desse bilhete que agora já parece mais uma carta. Ora, se amigos deixam de ser amigos, que os bilhetes também deixem de ser bilhetes, mesmo porque a efemeridade não é apenas para os bilhetes. “Debaixo do céu há tempo pra tudo e tempo certo para cada coisa”. Que o Tempo, o meu Senhor Tempo, faça-me entender e viver isso. Eu amo vocês, mas devo amar cada um. E até acho que essa situação está me ensinando a amar, está me revelando que eu não estava amando vocês.
Quero entender que o desentendimento entre vocês nem é para separar vocês, mas é para me ensinar a amar vocês separadamente, eu acredito que eu nasci pra amar, pra agradecer, e eu não estava enxergando mais cada um, mas um. Deus me castigou pra me ensinar a amar, e devo agradecer a Deus por essa dor terrível, quero, estou enxugando cada lágrima doída, exercitando a gratidão. Nada pode me tirar desse objetivo, desse destino que aquele espinho me impõe: de a cada dia agradecer por tudo, e essa tarefa agora se impõe, dói agradecer por isso, mas tenho esperança de um dia entender, qualquer dia, mesmo quando dia não mais houver.
Sou grato a vocês profundamente pelo até hoje, tenho o coração dolorosamente encharcado de gratidão por essa experiência tão maravilhosa. A vida tem me tirado muitas coisas, mas concomitante tem me ensinado a vivê-la. Neste ano, tenho tido muitas surpresas e aprendizados, não sei bem ainda para que servem todas essas coisas, mas, certamente, e quero crer, elas têm um sentido, devem ter, exigem um sentido.
Não quero mais me delongar. O tempo urge e a vida se impõe. Minha tarefa agora é não deixar vocês, melhor, é não deixar “ele” perder sua importância para mim; minha tarefa agora é não deixar “ela” perder sua importância para mim. Cuidá-los a cada um. Eis as minhas tarefas, dê-me, agora, Senhor, a força da resignação, a coragem da esperança e a beleza da fé para enfrentar uma solidão, essa reclusão pedagógica. O Tempo quer ser louvado por nós, que o louvemos, que lhe rendamos graças por tudo e por cada coisa. Não precisamos buscar entender nada agora, porque agora o Tempo quer iniciar seu ritual, Ele quer se manifestar. Que Ele seja bem-vindo. Adentre, Senhor, nossa vida e faça de nossa existência a sua olaria. Morrerei de saudade de vocês, mas lhes buscarei quando a dor for suportável. Eu amo a cada um de vocês, mas preciso do Tempo em mim agora!
Josemar também é Tempo!

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Corpo: uma ideia que dança

Pode-se dizer que uma das coisas mais incomuns é pensar o corpo em si mesmo, isentando-se, claro, das representações sociais. Melhor: talvez seja mais ainda incomum deixar o corpo pensar por si mesmo, deixá-lo todo ser pensamento. Os humanos, sendo bastante racionais, não permitem que o pensamento se revele tal como é: físico, corpóreo. É, parece estranho e deveras complexo, mas é preciso, é necessário acreditar que o pensamento é corpóreo.
Deixa-se essa complexidade de lado se pressupormos que nossa existência, toda ela e sem exceções, exige, antes de qualquer coisa, ele, o corpo. Ele é o fundamento, o alicerce, a condição de possibilidade para que tanto o escritor como o leitor interajam nesse texto. Sem corpo não há vida, não há mundo, não há existência real. Levando-o à radicalidade da sua afirmação, será possível declarar que corpo é tudo.
Porém, a vida humana – seus artifícios, o forjamento de tantos modos de vida e de representações sobre ela – transforma a relação do homem com seu corpo. De algum modo, talvez até necessário, as representações sobre a vida ganharam relevância em detrimento do corpo. Este passou a servir de maneira aparentemente incansável àquelas. E a dinâmica entre vida e corpo quase que guerreia numa autodestruição metaforizada pela pseudo-auto-afirmação, como se vida e corpo dispensassem uma necessária e absoluta distinção.
Ser magro, ser belo, ser branco, ser alto não são exigências emergidas do corpo, mas das representações sociais dispensadas pelas comunidades ou grupos a que os indivíduos pertencem. Não é verdade que magreza, beleza, brancura e altitude são categorias sinônimas de saúde e perfeição. As representações se impõem assim como o corpo, apesar da interdependência entre eles então desconsiderada. Afinal, “quem ama o feio bonito lhe parece”!
Mas é preciso lembrar, senão saber, que as representações são pontos de vista sobre alguma realidade. Algumas são pontos de vista fixados pelo costume da eficiência, tornando-se aquilo que chamamos de verdade. Ou seja, alguém acredita tanto que ser magro é bom para saúde que acaba construindo a realidade para que isto entre numa sintonia verossímil. A vida é para o indivíduo aquilo que ele acredita que é – apesar de ela se impor com quer. Ora, se as representações são pontos de vista, pode-se refletir que nada é tão verdadeiro como se apresenta, posto que tudo à medida que é pode não ser também. Eis um problema ético, eis a tarefa humana.
Pois bem! Uma verdade é anunciada: o corpo é aquilo que é e não pode deixar de ser – ei-lo. O corpo é o único ponto de vista que é em absoluto o ponto de qualquer vista, de qualquer visão, de qualquer perspectiva. Ele é o ponto, o lugar (lócus) por onde se vê algo, se percebe algo, se sente algo. Ele é o acontecimento onde tudo acontece: o nascimento, o crescimento, a morte, a tristeza, a alegria, a festa, a dança.
O pensamento tem que aprender a dançar com o corpo. Zeca Baleiro, na música Alma Nova, deparando-se com um corpo despido e belo, lembra-nos: “... E eu digo: Calma alma minha, Calminha, Você tem muito Que aprender...”. É, o pensamento que canta deve entrar em sintonia com o corpo que dança. Há um sentido na música e na dança, mas não há lógica nem regras enrigecidas como na racionalidade. O corpo que canta e dança torna-se leve e livre. “Quem canta os males espanta!”.
Uma das atividades humanas mais interessantes e belas é a dança. Dançar é verbo e como tal é possibilidade de ação, de acontecimento. É preciso ter um corpo todo disposto para ver a dança ser. Mesmo aqueles que não sabem dançar, porventura não gostem de dançar, todos gostam de, pelo menos, admirar alguém dançando em dada circunstância. Não há festa que não se perceba as insinuações da dança, por tímidas que sejam. Ela constitui a corporeidade, a dança revela os movimentos sinuosos, sensuais e atraentes do corpo. A dança desvela o corpo.
Exige-se observação para entender. Pôr-se a ver aquele que dança, sentir com os olhos seus movimentos, o fôlego, o suor, o peso da leveza, a textura da pele, a firmeza da flexibilidade... enfim, sentir por apenas ver, e ter como conseqüência um coração santamente invejoso e acelerado, num desejo imenso de cair na gandaia. Um corpo bem visto, admirado, desejado sempre acaba convidando a um encontro, vamos dizer, essencial. Ninguém pode dançar só. Pode-se dançar afastado, mas só é proibido.
Uma moça dançando sozinha no salão: todos e todas se sentem exigidos e exigidas à solidariedade. A dança exige e só é feliz na solidariedade, na partilha e no compartilhamento do sentido e do movimento do corpo, dos corpos. Dançando, a moça desperta, seu corpo desperta o pensamento em todos e em todas de que dançar é preciso. Dançando sozinha, ela não escolhe com quem quer dançar, mas impõe a todos o desejo de entrar na ciranda, desperta em cada corpo presente uma solidariedade vital e fecunda de liberdade e leveza, conduzindo o pensamento a uma alegria irradiante.
É dançando que se experimenta o pensamento leve. Cantando, as idéias como que são embaladas como uma criança que ninada tem seu corpo amolecido e logo embevecido de um sono acalentador. A harmonia essencial entre música e dança é o sinônimo metafórico da harmonia entre o pensamento e o corpo. É a coerência religiosa entre vida e morte. O corpo é uma idéia que dança – eis a musicalidade da existência.
O filósofo ateu declarou: “eu acreditaria num Deus que soubesse dançar... assim falou Zaratustra”. A vida conduzida por representações é demasiada pesada, enfadonha e triste. Mas a morte do corpo sempre nos impõe a lembrança de que em algum momento fomos alegres, talvez até felizes. Certamente que em meio às alegrias e felicidades a música e a dança compuseram o cenário da vida do corpo e do corpo da vida. Que o humano aprenda a dançar e, dançando, aprenda a viver. Que o humano ensine aos deuses a dançar e que os deuses entoem hinos de louvores aos humanos. (Ou: dêem ao humano uma Boa Morte)
Josemar é corpo!

segunda-feira, 2 de março de 2009

Necessidade

Tudo o que há, há por necessidade. A necessidade poderá ser interpretada como de ordem natural, histórica ou construída. Poder-se-á afirmar que uma coisa é necessariamente necessária, ou sua necessidade será não muito intensa, superficial, facultativa a ponto de se dizer desnecessária. Ora, uma coisa facultativa não é e nem pode ser uma coisa desnecessária. Se algo há, há por necessidade, mesmo que esta coisa não seja necessária para mim. Porém, foi necessária para outrem! A facultatividade de uma coisa para mim, não me outorga o direito de julgá-la desnecessária, mas apenas facultativa, pois amanhã, em contexto diferente, a coisa poderá ser necessária. A desnecessidade não existe para algo que tenha possibilidade de vir-a-ser, a desnecessariedade só há para algo que não pode vir a ser, portanto, este algo nem poderá ser considerado algo. Se há algo, algo será sempre necessário.
Creio, assim, que tudo, sendo necessário porque o fiz necessário ou porque sua necessidade foi imposta a mim, deve ser amado, senão, no mínimo, respeitado. Para não ficar no mundo das idéias e fazer-me entendido, darei um exemplo bem próximo: quando você sai de casa para ir à faculdade, ao trabalho ou a qualquer lugar e, durante o percurso, você encontra um impedimento, a exemplo de um congestionamento no trânsito, sua reação imediata é de chateação, pois algo te impede de seguir o percurso do modo como você planejou. Mas pense que algo está acontecendo à sua frente e que impede seu carro ou ônibus transitar. O que acontece, impedindo os carros transitarem livremente, é, certamente, o que você menos deseja, por isso lhe causa chateações, mas perceba que este algo é necessário para a pessoa que está realizando o ato que impede os carros de transitarem. O que não é necessário para você é necessário para outrem!Portanto, sendo necessário, mesmo que não seja para mim, deve ser e não tem como não ser. O ato não pode ser desfeito, consertado, transformado. O necessário não vem a ser, já é, está acontecendo, é o ato sendo. Desse modo, o necessário não é estar na ordem da possibilidade, do planejamento, da hipótese, o necessário é na medida do sendo. Se um arquiteto desenha uma planta projetando um imóvel, o cimento e a areia não são ainda necessários, só o serão quando os operários e máquinas chegarem ao local onde deverá iniciar a construção; é no ato de construir que tais elementos se farão necessários, antes eles são apenas hipóteses ou possibilidades.

18 de abril de 2008.
Josemar, algo necessário!

O ancião, as crianças e a felicidade...

Num certo dia, um grupo de crianças, que tendo ouvido falar da felicidade, procurou o ancião da aldeia, que tinha 100 anos, para perguntar-lhe qual era o segredo para ser feliz. O ancão, reunindo-as no jardim da praça, e acalmando-as, começou a contar-lhe uma estória:


Uma vez, um jovem de 15 anos, decidiu que o projeto de sua vida era de ser feliz. E ele disse a seus pais e seus amigos:
_ Quando adulto, eu quero ser um homem feliz!
O jovem cresceu, chegando aos 25 anos, decidiu:
_ Tenho que terminar minha faculdade, depois começar a trabalhar e ter filhos, assim serei feliz!
Aos 35 anos, aquele que era jovem disse:
_ Trabalharei intensamente para educar meus filhos, e quando eles estiverem criados eu serei um homem realizado e feliz!
Com 45 anos, ele ainda diz que terá que terminar de trabalhar, pois só depois de aposentado poderá descansar e ser feliz.
Com 60 anos, apaixonado pelos netos, diz que só quando os vê crescidos será feliz.
Chegando aos 80 anos, ele pede a Deus vida e saúde pois, sendo doente por causa da idade, ainda não é feliz, quer ver os filhos de seus netos...
Aí, ele completa 100 anos, e conclui:
_ Passei toda minha vida na esperança de que no futuro eu seria um homem feliz. Hoje, quando chega a morte em minha porta, sem perguntar se sou feliz, compreendo que perdi muito tempo pensando no futuro que é sempre o Agora.

Assim, o ancião ensinou às crianças que para ser feliz será preciso viver e amar intensamente como se não houvesse o amanhã, pois a esperança pelo futuro ‘pode ser’ a maior traição que um homem pode fazer a si mesmo.
08 de fevereiro de 2004,
Josemar - um desejo de felicidade!

domingo, 1 de março de 2009

Sal, Pimenta e Mel

Não sabendo usar bons versos para poder começar, começo falando de um não-saber. Eh! Um não-saber sobre o amor, mesmo por que o amor é sempre mal sabido, não se deixa saber, é apenas para sentir...
Contemplo teu modo de ser, teu modo de se apresentar aos meus olhos que desejam ver tudo, que desejam ver até o não-poder ver e saber.
Apenas pelo ter sentido, ponho-me a pensar, a falar, a degustar a imagem da tua presença; sentir a negritude de teu cabelo quase ondulado, estando sempre velado pelo artifício da sedução, lembrando-me as ondas naufragantes de muitos sonhos... Sentir teus olhos procurando repouso entre meu corpo desprovido do leito por ti desejado.
Tua boca! Não há palavras para falar de tua boca, fonte das palavras livres e seguras, objeto de todo o meu desejo, da saciedade, do encanto e da força; teu beijo, único e grande, tão grande que se transborda em minha memória que sempre busca insanas formas... Prefiro esquecer teu beijo a condenar-me à loucura das enganadoras formas! Teus dentes informando tua boca num movimento convidativo a todo desejo...

Teu corpo inteiro é grito na boca de meu desejo; meu desejo morto em esperanças; meu desejo que, pela tua decisão livre, está condenado a ser saciado pela falta, pela ausência tua, pelo eterno não-saber do gosto do sal com pimenta e mel; o gosto de um instante eterno do presente, de um presente que lembra tudo de você...
Você: tem o gosto do nunca provado; imagem de um futuro que, por tua imperativa liberdade de ser, já é passado; um passado sem cor, sem forma, sem sentido, sem você inteiro; um passado que só é desejo ressequido e ferido pelo amado livre... Amado, que por ser amado, torna-se livre pelo amor que lhe transpassa sem dor ou alegria, ferindo-se na tua liberdade...
Meu amor e tua liberdade sufocaram a virilidade de meu desejo, afirmando a dolorosa e real distância... Uma distância que me plantou num lugar qualquer, onde tua liberdade e meu desejo se desencontraram... Assim como se desencontraram a luz e a sombra, que não sendo opostas, buscam-se como que misturadas pelo caminho, onde a penumbra ofusca tudo e não mais sabemos sobre luz ou sombra.
Você, meu Bem, nasceu apenas para duas possibilidades: não ser conhecido ou ser amado! Eu, não podendo te amar com viril desejo, preferiria não te conhecer; mas se ti conheço, ama-lo-ei por quanto o amor em mim houver!
19 de setembro de 2006,
Josemar, quem ama não esquece!

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Feliz aniversário

Na vida, há muitas coisas que julgamos ou aprendemos a julgar importantes, e elas acabam sendo não pelo fato de serem por si mesmas, mas porque não podemos mais nos desvencilhar da crença de que são. Aliás, a própria vida é circunscrita neste preconceito de que ela própria é a coisa mais importante. No entanto, é bom saber que aqui importante não é sinônimo de “coisa boa”, mas daquilo que nossas crenças tornam relevantes dentro da dinâmica de nossa existência.
Em se tratando da vida, ou se tratando das coisas na vida, criou-se um costume de celebrar, festejar, reunir em alegria aqueles e aquelas com os quais e com as quais compartilhamos tudo ou boa parte desse tudo. E celebramos a vida ou as coisas que dela fazem parte. Mas a festa também pode significar uma estratégia de fuga, de mascaramento, fantasia sobre algo que nos aterroriza, assusta, amedronta, e este algo é mesmo a própria vida.
É que para mim – e não apenas para mim –, a pior coisa que pode acontecer, manifestar-se é o nascimento de alguém, de mim mesmo, enfim, de algo que venha a existir. Existir constitui-se de uma dor profundamente pungente. Sair do nada e entrar na dinâmica da existência é uma coisa profundamente indesejável por nós humanos, mas ainda assim, somos convocados a existir por acaso ou por vontade daqueles que, não querendo sofrer sozinhos, chamam a nós, fantasiando-nos como suas réplicas para alimentar a ilusão de suas perpetualidades.
Nascendo, imediatamente entramos no movimento fantasmagórico: criamos estilos de vida ou de sobrevivência, formas de morar, de higienes, de relações, de locomoção, modos de interpretar o mundo, as coisas, forjamos a idéia mesmo de interpretar, de conhecer e de verdade. Inventamos a escrita e o entendimento. Criamos a idéia de cultura. Tudo, tudo o que existe e que faz parte de nossa dinâmica existencial não passa de nossa necessidade de ultrapassar, sobrepor à consciência de que existimos e, portanto, sofremos. Agora entendo o porquê da frase nietzschiana que sempre me chamou a atenção e sempre esteve presente em meu pensamento: “a força curadora está no próprio ferimento”. É que parece que mergulhando na vida (ferida) encontramos seu sentido profundo: o sofrimento. E é assumindo este sentido que assumimos a vida mesma.
E se as invenções, as festas e celebrações são para esquecer o sentido de nossa existência, isso não significa que de fato esquecemo-lo. Pois a existência carrega consigo a tarefa de fazer-nos sempre vigilantes à existência, consciente de que existimos. E na obrigação de lembrar em determinada data a nossa existência e sua epifania, seu nascimento, sua explicação ao mundo, logo encontramos um modo todo ilusório, todo enfeitiçado para não mergulharmos em seu sentido. A festa, portanto, é nosso constructo necessário para suportar o fardo que é existir. Desejar um feliz aniversário é oferecer os votos para que o indivíduo verse com boas fantasias este seu próximo ano, ou, então, celebrar a vitória das fantasias do ano que passou. Bem, uma coisa não aniquila a outra: a festa é tanto pelo ano que passa como para o ano que se promete.
Diante do ano que virá, a promessa é a arma. A promessa enche o homem de esperança, de fantasias, de ficções. Prometer é estabelecer uma esperança. Esperança de...
Feliz aniversário...

Josemar, uma pseudônima promessa, 22/02/09 - 10:21h

domingo, 14 de dezembro de 2008

O ritual demandista

Não é novidade constatarmos que mulheres gostam de bolsas. Melhor, que elas não conseguem viver sem uma, duas, três, quatro etc. bolsas. Hoje mesmo, sair com uma amiga que não sai de casa sem a sua bolsa. E às vezes, confesso, incomoda-me, pois ela a leva até ao barzinho da esquina. Mas hoje, curiosamente, foi diferente, e por quê? Porque fiz o esforço de observar o uso que ela faria da bolsa. Observei? Sim, claro! Resultado: ela apenas tocou a bolsa, e a tocou porque ela – a bolsa – a incomodava em alguns momentos. Aí me perguntei: por que uma pessoa carrega algo que lhe incomoda? Bem, esta pergunta é feita por mim, homem. Certamente que minha amiga, usuária da bolsa, acharia minha pergunta quase que idiota. Mas acho que ela entenderia... ou não. Mas é fato, ela não usou a bolsa pra nada. Mas o que as mulheres levam na bolsa? Ah, com certeza não temos dúvida que não muito raro encontraremos dinheiro, o confortável absorvente, pente, maquiagem, fio-dental (não a calcinha, mas aquele próprio aos dentes!), celular, documentos etc. etc. O cômico é que algumas levam absorvente até quando já menstruaram na semana passada, talvez seja para socorrer alguma amiga que, certamente, tem bolsa e leva absorvente dentro da mesma. Mas, enfim, a bolsa é essencial na vida delas. E é bom que elas tenham algo essencial que lhes dê a sensação de presença. E minha fala não é crítica a esse fato, mas, apenas, descritiva e, talvez, analítica. É que cheguei à conclusão – minha conclusão – que o assunto é mesmo da presença, ou melhor, da falta. O poeta Goethe dizia que a “presença é uma deusa poderosa” – também a ausência! A bolsa – como o copo, a jarra, o vaso – é um recipiente pronto a ser preenchido. Seu sentido e sua função são ser e está vazia para ser toda cheia de algo que lhe seja, essencialmente, estranho à sua natureza. Assim, ainda concluo que a bolsa – como minha amiga, espontaneamente, sugere – atende a certa demanda. Aí tive a curiosidade de saber o que nosso amigo dicionário entende por bolsa e por demanda.
Diz ele a respeito da bolsa:

(s. f.) saquinho onde se traz o dinheiro; saquinha fechada por meio de cordões ou fecho; dinheiro para ocorrer às despesas correntes; conjunto de túnicas concêntricas que envolvem os testículos; saco onde estão instalados certos órgãos, ou cheio de líquidos orgânicos; (no pl. ) alforjes. – de estudo: subsídio ou pensão concedida pelo Estado, e outras instituições, a estudantes e investigadores para prosseguimento de estudos ou financiamento de projectos científicos, no estrangeiro ou no país de origem; - de valores: mercado público organizado segundo regras precisas, onde se reúnem negociantes e corretores para a negociação de títulos de crédito, acções, fundos públicos, etc.; - -do-fel: vesícula biliar; - -de-pastor: erva brassicácea.

E sobre demandar:
(sf) ação de demandar; procura; ação judicial; processo; litígio; (econ.) procura; (psican.) pedido ou exigência mais ou menos consciente expresso pelo paciente, situado entre o desejo e a necessidade.

E sobre aquilo ou aquele que demanda, ele diz:


demandante: (adj2g) que ou aquele que demanda; demandista.
E são variados os tamanhos das bolsas: bolsona, bolsa e boceta. As mais usadas são as bolsonas e as bolsas. Elas, de um modo geral, não gostam de bocetas, o que não entendo. Só as senhoras mais velhas gostam das bocetas para colocar moedas. Em feiras livres são bastante comuns, as bocetas. Geralmente, as bocetas estão entupidas de moedas. As bocetas, mais do que as bolsas e bolsonas, têm uma relação forte com o capitalismo. Em bocetas só se encontra dinheiro. É que não dá nem pra colocar absorvente em bocetas, você acredita?! Só dinheiro! É que na bolsona ou na bolsa é ruim ter moedas, elas são miúdas demais. Nas bocetas não, as moedas são bem visíveis. Ás vezes é possível ver mulheres tirando a boceta de dentro da bolsa. Mas é isso, o que não se pode levar em uma se leva na outra, mesmo que simbolicamente. Dentro de uma boceta não cabe tudo que se cabe numa bolsona, então, se ela não pode botar na boceta, bota na bolsa. A demanda de uma boceta pode até ser grande, mas é a bolsa ou bolsona que atende as demandas das bocetas das demandantes. Pois é... o vazio da bolsa não atende apenas às demandas aparentes das bocetas das demandantes, mas antes atende, simbolicamente, a outras tantas demandas que nem elas sabem – apesar de sentirem.
O que tenho percebido também é que as mulheres de um modo geral têm várias bolsas e bolsonas, agora, boceta só tem uma. Nunca percebi as mulheres tirando várias bocetas de dentro das bolsas, mas apenas uma. Minha mãe, por exemplo, usa de duas a três bolsas ao mesmo tempo, mas apenas uma boceta. Por que ela usa de duas a três bolsas? É que ela tem uma demanda que não dá para atender aqui nesse pequeno texto, nem em sua boceta. Documentos, livros e computadores não cabem em bocetas, mas exigem várias bolsas e simbolizam uma família inteira. Ah, você não entendeu o “simbolicamente”? É que nas bocetas não dá pra colocar todos os objetos que satisfariam as frustrações e recalques das mulheres demandantes. Bem, não quero me delongar nesse assunto, mesmo porque sou homem e a cultura não me permite usar bolsas, e a natureza também não permite que homens entendam delas. Mas também não acredite que por isso nós, homens, não temos demandas. Ah, e como temos! É que se as mulheres não são mulheres quando sem bolsas, os homens não são homens sem carro – ou sem moto, no mínimo sem bicicleta, sem esquecer-se do pobre alazão. E, enquanto são variados os modelos das bolsonas, bolsas e bocetas, assim também os dos carros. E, agora, para meu tormento, inventaram que carro bom é aquele que tem som. Pois bem, enquanto a mulher faz todo um ritual sensual e silencioso com suas bolsonas, bolsas ou bocetas para chamar a atenção dos seus desejáveis homens, estes, num ritual todo barulhento e exibicionista, ligam em alto volume o som de seus carros, tentando atender, simbolicamente, às suas demandas, e querendo chamar a atenção das mulheres que usam bolsonas, bolsas e bocetas silenciosas.
Josemar, Um não bolsista, em 13/12/08 às 19:50h