sexta-feira, 24 de julho de 2009

Corpo: uma ideia que dança

Pode-se dizer que uma das coisas mais incomuns é pensar o corpo em si mesmo, isentando-se, claro, das representações sociais. Melhor: talvez seja mais ainda incomum deixar o corpo pensar por si mesmo, deixá-lo todo ser pensamento. Os humanos, sendo bastante racionais, não permitem que o pensamento se revele tal como é: físico, corpóreo. É, parece estranho e deveras complexo, mas é preciso, é necessário acreditar que o pensamento é corpóreo.
Deixa-se essa complexidade de lado se pressupormos que nossa existência, toda ela e sem exceções, exige, antes de qualquer coisa, ele, o corpo. Ele é o fundamento, o alicerce, a condição de possibilidade para que tanto o escritor como o leitor interajam nesse texto. Sem corpo não há vida, não há mundo, não há existência real. Levando-o à radicalidade da sua afirmação, será possível declarar que corpo é tudo.
Porém, a vida humana – seus artifícios, o forjamento de tantos modos de vida e de representações sobre ela – transforma a relação do homem com seu corpo. De algum modo, talvez até necessário, as representações sobre a vida ganharam relevância em detrimento do corpo. Este passou a servir de maneira aparentemente incansável àquelas. E a dinâmica entre vida e corpo quase que guerreia numa autodestruição metaforizada pela pseudo-auto-afirmação, como se vida e corpo dispensassem uma necessária e absoluta distinção.
Ser magro, ser belo, ser branco, ser alto não são exigências emergidas do corpo, mas das representações sociais dispensadas pelas comunidades ou grupos a que os indivíduos pertencem. Não é verdade que magreza, beleza, brancura e altitude são categorias sinônimas de saúde e perfeição. As representações se impõem assim como o corpo, apesar da interdependência entre eles então desconsiderada. Afinal, “quem ama o feio bonito lhe parece”!
Mas é preciso lembrar, senão saber, que as representações são pontos de vista sobre alguma realidade. Algumas são pontos de vista fixados pelo costume da eficiência, tornando-se aquilo que chamamos de verdade. Ou seja, alguém acredita tanto que ser magro é bom para saúde que acaba construindo a realidade para que isto entre numa sintonia verossímil. A vida é para o indivíduo aquilo que ele acredita que é – apesar de ela se impor com quer. Ora, se as representações são pontos de vista, pode-se refletir que nada é tão verdadeiro como se apresenta, posto que tudo à medida que é pode não ser também. Eis um problema ético, eis a tarefa humana.
Pois bem! Uma verdade é anunciada: o corpo é aquilo que é e não pode deixar de ser – ei-lo. O corpo é o único ponto de vista que é em absoluto o ponto de qualquer vista, de qualquer visão, de qualquer perspectiva. Ele é o ponto, o lugar (lócus) por onde se vê algo, se percebe algo, se sente algo. Ele é o acontecimento onde tudo acontece: o nascimento, o crescimento, a morte, a tristeza, a alegria, a festa, a dança.
O pensamento tem que aprender a dançar com o corpo. Zeca Baleiro, na música Alma Nova, deparando-se com um corpo despido e belo, lembra-nos: “... E eu digo: Calma alma minha, Calminha, Você tem muito Que aprender...”. É, o pensamento que canta deve entrar em sintonia com o corpo que dança. Há um sentido na música e na dança, mas não há lógica nem regras enrigecidas como na racionalidade. O corpo que canta e dança torna-se leve e livre. “Quem canta os males espanta!”.
Uma das atividades humanas mais interessantes e belas é a dança. Dançar é verbo e como tal é possibilidade de ação, de acontecimento. É preciso ter um corpo todo disposto para ver a dança ser. Mesmo aqueles que não sabem dançar, porventura não gostem de dançar, todos gostam de, pelo menos, admirar alguém dançando em dada circunstância. Não há festa que não se perceba as insinuações da dança, por tímidas que sejam. Ela constitui a corporeidade, a dança revela os movimentos sinuosos, sensuais e atraentes do corpo. A dança desvela o corpo.
Exige-se observação para entender. Pôr-se a ver aquele que dança, sentir com os olhos seus movimentos, o fôlego, o suor, o peso da leveza, a textura da pele, a firmeza da flexibilidade... enfim, sentir por apenas ver, e ter como conseqüência um coração santamente invejoso e acelerado, num desejo imenso de cair na gandaia. Um corpo bem visto, admirado, desejado sempre acaba convidando a um encontro, vamos dizer, essencial. Ninguém pode dançar só. Pode-se dançar afastado, mas só é proibido.
Uma moça dançando sozinha no salão: todos e todas se sentem exigidos e exigidas à solidariedade. A dança exige e só é feliz na solidariedade, na partilha e no compartilhamento do sentido e do movimento do corpo, dos corpos. Dançando, a moça desperta, seu corpo desperta o pensamento em todos e em todas de que dançar é preciso. Dançando sozinha, ela não escolhe com quem quer dançar, mas impõe a todos o desejo de entrar na ciranda, desperta em cada corpo presente uma solidariedade vital e fecunda de liberdade e leveza, conduzindo o pensamento a uma alegria irradiante.
É dançando que se experimenta o pensamento leve. Cantando, as idéias como que são embaladas como uma criança que ninada tem seu corpo amolecido e logo embevecido de um sono acalentador. A harmonia essencial entre música e dança é o sinônimo metafórico da harmonia entre o pensamento e o corpo. É a coerência religiosa entre vida e morte. O corpo é uma idéia que dança – eis a musicalidade da existência.
O filósofo ateu declarou: “eu acreditaria num Deus que soubesse dançar... assim falou Zaratustra”. A vida conduzida por representações é demasiada pesada, enfadonha e triste. Mas a morte do corpo sempre nos impõe a lembrança de que em algum momento fomos alegres, talvez até felizes. Certamente que em meio às alegrias e felicidades a música e a dança compuseram o cenário da vida do corpo e do corpo da vida. Que o humano aprenda a dançar e, dançando, aprenda a viver. Que o humano ensine aos deuses a dançar e que os deuses entoem hinos de louvores aos humanos. (Ou: dêem ao humano uma Boa Morte)
Josemar é corpo!