segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Um nada de poder

Acho que uma das coisas mais inquietantes em nós é a ansiedade. Ela nunca está parada. Por mais que ela perdure em nossa alma instintiva, sua presença é constante e perturbadora. Deve haver vários tipos de ansiedade, mas quero falar apenas de duas: aquela de quando se sabe as causas, e aquela outra que julgo bem pior, de causas desconhecidas. Pois bem, sofro desta última. Certamente que algum respeitável psicanalista diria que sempre há causas para ansiedades. E é justamente aí o implícito: na ansiedade o que há é precisamente um não-há. Ansiedade é presença de uma ausência aterradora. Mas quando digo que sofro de ansiedade de causas desconhecidas não é por desconhecer suas causas, mas porque elas são extensas e não cabem na finitude das sempre pequenas palavras. Recorro sempre à gramática para expor a mim mesmo as causas dessa ansiedade, porém, só as encontro na pele, atravessadas como espinhos que encontram em sua fineza a facilidade de atravessar. Espinho de verdade de pequeno traz a ponta. Espinhos invisíveis, pele ressentida, alma ansiosa. Nada pra fazer. Nada a se fazer. E é esse nada que perturba. Aí penso que toda ansiedade é a consciência da presença do nada em nós, do vazio e da falta. Talvez, o que mais incomode na ansiedade não seja esse nada a se fazer, mas essa consciência de que, não se fazendo nada, nada se é. Pois ser, é sempre um sendo alguma coisa. Ser é fazer-se sendo. Nesse nada, eu estou pleno de possibilidade, mas de impossibilidades também. Então, O nada é poder. E a possibilidade é um poder ser ou poder de nada ser. Poder para qualquer coisa ou para qualquer nada.
Bem, eu não vou continuar escrevendo porque preciso deleitar-me nesse poder de nada da ansiedade.


08/11 às 00:54h - Um momento ansioso

sábado, 1 de novembro de 2008

PARÁFRASE

Hoje o dia foi cheio de sensibilidade, na verdade, um dia muito sensível. E a noite foi surpreendente e encantadora, mas também dramática. A esperança pousou inesperada e assustadoramente na inocência. Ela veio do inesperado e assustou a inocência. Assim, percebi que nem sempre a esperança é bem-vinda. É que, paradoxalmente, a esperança pode desesperar. O inusitado é que, hoje, a esperança assustou e desesperou a inocência. Esta, assustada e desesperada, gritava num pedido de socorro, demonstrando desespero e susto. Eh, a esperança assusta, às vezes. Desesperada e assustada, a inocência era acolhida em vários braços não inocentes. E todos, na não inocência, buscava auxílios nas palavras para acalentar a inocência tão perturbada pela esperança. Uns abraçavam, outros falavam, outros riram da inocência, outros sentiam enorme compaixão. A inocência estava sendo vítima da compaixão, do zelo, do acalento, das palavras, mas, sobretudo, a inocência era vítima da esperança. A esperança desespera. Naquele instante, esperança e inocência se opunha, em nada se aproximavam a não ser no desespero. Sim, o desespero une esperança e inocência. Nesse rebuliço de ruptura e unidade estranha, foge desesperada também a esperança. Mas também desesperada fica a inocência na esperança de algo lhe apaziguar. Inocência desesperada na espera de... E mesmo no desespero, a inocência reclama da presença fugidia da esperança que, na presença assustadora logo se fez ausente com o presente desespero. No desespero assustado, olha a inocência a escura noite por onde a esperança não mais era vista, mas temida. Sim, mais uma vez sim para a distância segura por onde a esperança se refugiara. Esperança temida e indesejada. Esperança não esperada. A esperança da inocência agora era de que a esperança não mais voltasse. A inocência espera que a esperança não volte, pois ela desespera. A esperança perdida em vôo na noite quase escura, sob luz tênue da velha lua nova, ainda permanecia presente no grito desesperado da inocência que, com olhar salgado, chorava olhando na busca esperançosa pela esperança também desesperada e agora escurecida no espaço enegrecido pela noite calma. Noite calma, velha lua nova, esperança e inocência. Esse conjunto estranho que ao mesmo tempo une, estremece, separa e reúne. A noite avança, a inocência chora, o desespero se dissipa, a esperança voa e repousa além do olhar desesperado da inocência. Agora, por fim, não há mais choro nem desespero. Agora, a inocência tem medo da esperança voltar, mas tem esperança de não mais ter medo da presença da esperança. Um dia de esperança, uma noite de desespero.


Josemar, um pseudônimo de inocência e esperança, 31/10/2008.

Morte Santa, vida cruel!

Prezadíssimo Amigo,
Escrevo-lhe não apenas pela exigência de comunhão que nossa amizade nos impõe, mas, sobretudo, pela referência que você é no meu pensamento quando este se direciona à vida, problematizando-a. E hoje, você, por diversas vezes, foi reclamado de presença nas circunstâncias que vivi e pelos pensamentos que fluíram em mim. Hoje, fui acordado por um telefonema de um amigo, onde ele me noticiava a morte de seu pai, um infarto pré-sabido, porém, indesejado e inesperado. Sr. José, depois de cuidados com o próprio corpo, ao descansar da refeição noturna, foi surpreendido pela morte quando sentado numa cadeira no quintal de sua casa quando amenizava o calor nesse início de primavera. Surpreendido ele – e nós todos!
Pois bem! Mesmo em meio a desconfortos, clamores, dores, angústias e tantos outros perturbadores afetos, peguei-me em vários momentos refletindo sobre a vida que nos circunda e se impõe com suas surpresas. Até que eu poderia elencar os inúmeros fatos pelos quais se ocupara meu pensar, mas seria enfadonho ou desesperador. Como não sei de como seus afetos estarão ao ler essa carta, prefiro que você, na riqueza de sua potencialidade imagética, possa criar, forjar, hipotetizar esses fatos. E sei que você é capaz de fazê-lo.
Mas para situá-lo nas minhas interpretações, e supondo poder assim fazer, exporarei um fato que me fez pensar em inúmeros outros:

... Em um determinado momento, presenciei um garoto, também filho se Sr. José, saindo da capela do hospital de uma oura cidade, onde velávamos o seu pai, para sua casa. Era preciso atravessar uma ponte. Ele precisava trocar de roupa. De repente o garoto pega uma bicicleta e segue seu próprio caminho. E foi aqui que me pus a pensar: ele teria de atravessar a ponte que separa as duas cidades, e imaginei-me acima da ponte, como um olho que pudesse ver tudo e todos. E tendo eu assim me imaginado, dispus-me a imaginar inúmeras pessoas atravessando a ponte, muitas de automóveis, outras andando, algumas porventura a cavalo (é permitido andar à cavalo sobre a ponte), algumas não atravessavam a ponte mas o rio, de canoa, outras controlavam a movimentação sobre a ponte, e outras atravessavam de bicicleta como o garoto. Aí X, fiquei pensando o seguinte: eu sabia que uma daquelas pessoas atravessando a ponte de bicicleta (ou o rio! Atravessa-se a ponte ou o rio?) estava vindo de uma cidade A e ia para a cidade B, que estava vivendo o drama da perda física absoluta de seu pai, que ia à sua casa trocar de roupas – quem sabe tomar um banho – etc., mas o que me incomodara naquele instante era imaginar dezenas de outras pessoas atravessando a ponte e/ou rio e não saber quem elas eram, de onde vinham, para onde iam, o que pensavam, já que nem mesmo eu, conhecendo o garoto, jamais poderia imaginar o conteúdo de seu pensamento. Será que por alguma coincidência alguém poderia estar vivendo o mesmo drama do garoto? Será que uma daquelas pessoas poderia estar indo cometer algum homicídio? Suicídio? Fazer alguma declaração de amor? Ou visitar um moribundo? Ou quem sabe alguma mulher estava se dirigindo à maternidade para ter seu filho/a? Será que havia mulheres atravessando a ponte e/ou o rio? Por que havia, por que há pessoas com necessidade de atravessá-los? Por que há necessidade sempre para algo? Por que eu estaria pensando aquilo tudo e não outra coisa? Por que eu tenho/tive a necessidade quase existencial de escrever isso para você, supondo que você dará importância a todas essas coisas que nem mesmo eu sei o porquê dou importância? Por que damos importância? Por que por quês...?

Só sei que a morte do Sr. José suscitou filosofia em mim! A morte filosofou em mim ou eu filosofei sobre ela? Atravessar pontes ou rios é viver, é estar vivo, mesmo que essa vida esteja refletindo sobre a morte, servindo-a, sofrendo-a. No atravessar, o mistério se manifesta, revela-se permanecendo misterioso. Só agora entendo que o mistério se revela permanecendo mistério, e, assim, nem tudo que se revela se desvela por completo.
Guimarães Rosa falou uma vez e para sempre que “o mundo do rio não é o mundo da ponte”. Supondo que os habitantes do rio sejam a própria água, os peixinhos e outros mais, certamente que Guimarães tenha sido razoável. Mas penso que o mundo do rio também é o mundo da ponte porque esta está construída sobre aquele, ou seja, o mundo que se manifesta sobre a ponte não ignora o rio, mas o reconhece de tal maneira que se cria um artifício todo racional para atravessar, agora sim, o rio.
Nessas idas e vindas, de todas as gentes, de todas as pessoas, sejam elas presentes na velha e memorável ponte de Cachoeira, sejam elas nas Avenidas Paulista ou Sete de Setembro, ou mesmo no calçadão em Copacabana... todas elas carregam consigo o mistério de serem algo ou nada serem; o mistério finito de significarem as coisas de tal modo que não suportam o desfazer desses significados. E que essas gentes e pessoas também somos nós em nossas idas e vindas, no nosso parar e no nosso dormir... Em tudo somos essa incógnita. Faça meu querido X, ou repita a experiência de sentar num bar, em algum lugar bastante movimentado, onde se possa ver pessoas, carros, animais e objetos quaisquer, e depois de beber o primeiro copo de uma saborosa e gelada cerveja, contemple, c-o-n-t-e-m-p-l-e todas essas coisas, perguntando-se o que elas podem ser, podem fazer, podem sentir... E o que mais puder perguntar-se.
Não posso supor as hermenêuticas que você será capaz de fazer, mas suponho que você terá surpresas. Aviso-lhe, de antemão, que elas podem ser desagradáveis. Perguntar-se sobre essas coisas exige um espírito forte, mais forte que o meu. Um espírito capaz de suportar a dureza da existência, de sua nudeza, de sua força, de seu vir-a-ser-qualquer-coisa, de sua real e absoluta despreocupação por definições, estabilidades, seguranças etc. Advirto-te do perigo de pôr-se a vê! Mas também advirto da necessidade de realizar essa tarefa humana, demasiada humana.
E é nesse olhar todo humano que teremos a capacidade de mensurar, mesmo pseudonimamente, o valor da existência. Digo pseudonimamente porque a existência é trágica mesmo, sem sentido e sem valor. Hoje, mais uma vez, reconfirmei esse caráter casual, factível da existência. Às 16h deste dia, observando os passos da esposa do então faleicdo Sr. José, mãe do meu amigo e de seu irmão, em direção ao cemitério, fiquei imaginando o que ela estaria fazendo às 16h do dia anterior: será que imaginara que no dia seguinte, naquele mesmo horário, estaria, dolorosamente, levando seu esposo ao sepulcro? Imaginara que no dia seguinte assumiria o estigma de viúva? É dessa facticidade que reclamo, que sofro, que me dói, mas que digo sim, que reconheço, que aplaudo e que afirmo a ti e a todos. Reconheço a existência assim: impensável, por isso, dolorosa.
Não dói morrer, não dói sepultar... dói permanecer vivo, sentir mais uma falta se constituindo dentro de nós; dói saber que não se pode evitar essa constituição; dói saber não ter força para suportar cada falta, cada ausência, cada... dor. Sartre uma vez falou que “não importa o que fizeram de nós, mas o que faremos do que fizeram de nós”. É! Não sei se isso tudo é forjado pela cultura, só sei que estou assim: sentindo-me abandonado e acolhido, sozinho e acompanhado, frágil e forte, uma unidade e uma contradição, qualquer coisa; sentindo-me sem saber o que fazer do que fizeram de mim.
Essa indefinição existencial me dilacera mas me inspira...
Diante de tudo isso, pensei em você... você esse outro tão incompreensível e incompreendido como eu. Nisto somos semelhantes, nisto nos distanciamos. Nisto somos um mistério (des)conhecido.
Sinto, neste momento, tua ausência no desejo de abraçar-te!
26 de setembro de 2008.
Josemar